Metade de mim é saudade. A outra metade também.
Meu melhor amigo se foi há um mês. Para as estatísticas, a sua ida — nada mais é — do que um número; mais um que teve sua vida ceifada pelo coronavírus e mais uma família que perdeu um ente querido. O Brasil ultrapassou a marca de 140 mil mortos e meu pai é um deles.
Perder alguém por coronavírus é muito triste. Não teve despedida, não teve visita — nada. Teve muito silêncio, misturado com impotência e muita, muita tristeza. Desde o momento do diagnóstico, até a sua ida, foram cinco dias. Desde a sua partida, tenho refletido muito sobre a morte e tenho tentado viver o luto — nem que pra isso seja necessário chorar dias a fio.
Ninguém está preparado para o fim. Vivemos num mundo onde falar sobre morte é tabu e passamos as nossas vidas tentando afastá-la de nós, mesmo sabendo que a morte é a única certeza que carregamos ao longo da vida. É muito curioso pensar sob esse prisma, porque certeza, é o que mais buscamos. Certeza no emprego, no amor e em outros tantos assuntos. Por isso que nesse contexto pandêmico, o desconforto é geral. Nos deparamos com um mar de incertezas, o que para a maioria, pode ser imensamente difícil de navegar.
A morte do meu pai foi algo que me assombrou por toda a minha vida. Sou a filha temporã de três filhos e quando cheguei ao mundo, minha irmã já tinha dois filhos e meu irmão já tinha saído de casa pra casar. Eu nasci filha e tia. Seu Jair, era pai e também avô. Casou-se a primeira vez e teve os meus irmãos. Eu, vim muito tempo depois — no segundo casamento. Por ser a filha mais nova de três irmãos, o meu pai sempre foi o mais velho dos pais da minha turma na escola. Lembro que alguns o confundiam com meu avô: “Aline, seu avô acabou de chegar pra te buscar”. Às vezes eu explicava a história: “Não, gente. Ele não é meu avô. É meu pai. Sou filha do segundo casamento”. Noutras vezes, eu só respondia ok.
Tive o privilégio de tê-lo muito presente na minha vida. Quando ele se aposentou, eu tinha quatro anos. Por esta razão, a sua presença sempre foi muito intensa na minha vida — das idas à escola, às festinhas no início da adolescência. Durante todo o meu período escolar, era ele quem me acordava todos os dias. Minha mãe conta que ele sempre fez questão de desempenhar essas funções — da mamadeira ao café da manhã. Durante o período da faculdade, tínhamos uma rotina muito entrosada e antes de eu sair, ele sempre me perguntava: “Filha, você pegou dinheiro?”. Eu respondia que sim e seguíamos juntos — ele ia à padaria e eu me despedia pra pegar o ônibus. Quando eu voltava tarde do estágio, ele ia me buscar no ponto de ônibus. Todo dia era assim.
Faz cinco anos que estou fora do Brasil e viver essa experiência longe, sozinha e durante essa pandemia, tem sido muito doído. O luto solitário é extremamente difícil, mas é também, uma oportunidade e um grande aprendizado. A verdade é que, por mais que a gente tente, não dá pra terceirizar responsabilidades, muito menos a dor. Às vezes tenho vontade de entregar a minha dor pra alguém, mas não dá. E sim, essa dor é muito doída, mas é preciso enfrentá-la, pra depois transformá-la. É como dizem por aí: “The only way out is through”.