Sexta

Aline Alvarenga
2 min readNov 26, 2021

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Estou na padaria e, logo à frente, senta-se um homem de meia idade. Digo meia idade porque seu cabelo rarefeito denuncia o passar dos anos. Noto que ele carrega quilos extras, porque as dobras de sua barriga marcam a sua camisa polo azul clara. Me distraio com a garçonete que se aproxima para anotar o seu pedido e, logo em seguida, retorno para o meu livro que repousa no meu colo. Trata-se da história de um imigrante vietnamita que mora nos Estados Unidos. O livro é espetacular e, apesar de sua densidade, tem também uma delicadeza — principalmente quando o escritor narra sua relação com a mãe. Minutos depois a garçonete retorna com o desjejum do sujeito: um salgado e uma Coca-Cola pequena, daquelas de vidro. Fico surpresa com o pedido e olho para o relógio: são oito da manhã de uma sexta-feira. Confesso que há um julgamento no meu olhar e lembro da última vez que bebi refrigerante: foi há mais de oito anos, mas, ainda assim, fecho os olhos e consigo sentir o gás percorrendo minha garganta e inundando o meu nariz. Lembro também do fatídico episódio quando uma garrafa de Coca-Cola de vidro explodiu nas minhas mãos e um caco de vidro bateu na minha canela esquerda, rompendo a minha pele e deixando uma cicatriz para a vida — a primeira. Eu tinha cerca de sete anos e ainda me recordo do semblante assustado do meu pai enquanto o sangue quente escorria pela minha perna até tocar o azulejo da cozinha. Olho novamente e o homem come o seu café da manhã sem nenhum ar de satisfação. Parece conformado — cansado, talvez? — , e a impressão que tenho é que ele está no automático: comendo e olhando no celular. E, quando ele se levanta e recolhe seus objetos pessoais da mesa, seu celular se ilumina e, de relance, consigo ver o retrato de uma mulher como papel de parede. E mais: a mulher não está sozinha; ele também está na foto, acolhendo-a num abraço carinhoso. Concluo, então, que ele tem alguém e isso me causa um profundo estranhamento. Nossos olhares se encontram por alguns segundos e, nesse momento, talvez ele também me julgue, ou até sinta pena por eu ser aquela criatura clichê que toma café sozinha na padaria enquanto lê um livro. Talvez ele até escreva um texto sobre mim também. Vai saber.

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